Engenheiro, militar, geólogo, autor de ficção e poesia, Euclides da Cunha foi acima de tudo, um intérprete do Brasil. Sua obra pode ser considerada a principal contribuição na gênese da matriz dualista de interpretação da sociedade brasileira, ainda que não tenha sido a primeira a pensar o Brasil como nação dividida entre o litoral e o sertão. Muitas foram as correntes de pensamento que o influenciaram, entre elas o positivismo militar e as teorias deterministas climáticas e raciais europeias. Fruto da cobertura jornalística do conflito de Canudos, seu livro Os sertões alcançou imensa repercussão no ano em que foi publicado, tornando-se um clássico do pensamento social e pode-se considerá-lo um dos textos que inventou o Brasil.
Euclides da Cunha ingressou em 1886 na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, onde participou ativamente de manifestações republicanas. O início de sua carreira foi marcado pela frustração das expectativas de quem não se entusiasmava com a vida militar, embora o positivismo de Benjamin Constant o tenha influenciado bastante. Um ponto de inflexão importante na sua trajetória veio com a participação no conflito de Canudos. Como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, presenciou as três semanas finais de uma guerra que durante onze meses abalou a República e que terminou, em outubro de 1897, com o massacre dos sertanejos.
Como fruto desta cobertura jornalística, em 1902, publicou Os sertões. Bem recebido nos meios intelectuais da época, o livro transformaria a imagem romântica que até então se tinha do sertão. Narrando evento histórico de grande repercussão nos primeiros anos do período republicano e que teve como cenário o semiárido nordestino, Euclides da Cunha teve seu olhar litorâneo confrontado com uma realidade muito diferente daquela que vinha sendo divulgada pelos literatos românticos e descreveu as condições precárias em que se encontravam as populações sertanejas, as quais pareciam viver em outro tempo, habitar outro país.
Oscilando entre o cientificismo e o romantismo, este ‘retrato do Brasil’, pintado com cores bastante fortes por Euclides da Cunha, inspirou representações acerca da nação e da identidade nacional marcadas pela compreensão de litoral e sertão como ordens sociais distintas, ou seja, um polo atrasado, no sertão, porém considerado a base da nacionalidade, e um polo civilizado, formado entretanto, por copistas, elites políticas e intelectuais que permaneciam com os olhos voltados para a Europa, de costas para o país. Embora não tenha sido o primeiro a pensar a formação histórica do país com base nesta dualidade, foi este autor que construiu de forma mais elaborada o argumento sobre o isolamento do sertanejo, que ele julgava estar na base do desequilíbrio social vivenciado pelo Brasil na época. Desde então, essa ideia foi incorporada ao amplo rol de sentidos já atribuídos ao sertão, aos quais ainda se somariam outros decorrentes das impressões contidas nos relatos das viagens científicas realizadas ao interior durante o período republicano.
Menos conhecidos são seus ensaios amazônicos, decorrentes da missão diplomática chefiada pelo autor entre dezembro de 1904 e janeiro de 1906 com o objetivo de dirimir dúvidas relativas a questões de limites entre o recém-incorporado território do Acre e o Peru. Na condição de chefe da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, Euclides da Cunha explorou as nascentes do rio e redigiu posteriormente os ensaios sobre a Amazônia reunidos em À margem da história, livro póstumo publicado em 1909. Comparada à experiência nos sertões baianos, a viagem à Amazônia foi longa, mas não resultou em obra do mesmo fôlego. Entretanto, estes ensaios reforçam a tese de uma formação histórica marcada por contrastes e potenciais antagonismos, em que caberia à ciência e aos intelectuais portadores das novas ideias científicas a tarefa de promover o encontro entre Estado e nação.
A matriz dualista de pensamento é considerada componente fundamental da imaginação social sobre o país. Dentro dela, o dualismo litoral-sertão se destaca como uma das representações mais fortes do processo de construção simbólica da nação, conformando, portanto, desde Euclides da Cunha, uma das vias pelas quais era possível interpretar o Brasil.
SUGESTÕES DE LEITURA:
ABREU, Regina. O enigma de Os sertões. Rio de Janeiro: Funarte/Rocco, 1998.
BERNUCCI, Leopoldo. A imitação dos sentidos: prógonos, contemporâneos e epígonos de Euclides de Cunha. São Paulo: Edusp, 1995.
COSTA LIMA, Luiz. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
HARDMAN, Francisco Foot. “A vingança da hileia: os sertões amazônicos de Euclides”. Tempo brasileiro, n. 144, jan-mar., 2001, pp. 29-64.
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: IUPERJ/Revan, 1999.
RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.