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Lima Barreto

Lima Barreto (1881-1922) é um intérprete singular e fundamental do Brasil. É produto dele, mas também produtor de seu contexto, tendo denunciado bovarismos, políticas de exclusivismo social, segmentações urbanas, corrupção política, patrimonialismos e divisões culturais. E, como todo bom testemunho, o escritor é também um poço de ambiguidades. Era contra a ABL mas tentou fazer parte dela; elegeu os subúrbios como cenário de sua literatura, mas denunciou o provincianismo do local; era a favor da modernização do país, porém contra costumes “importados”. Testemunha e artífice da Primeira República, Lima Barreto foi vítima e protagonista desse momento nervoso da história brasileira. Foi ainda mais: soube desconfiar das mazelas da política e da sociedade brasileira, ao mesmo tempo que, de forma comovente, descreveu culturas, religiosidades e aspirações de grupos sociais normalmente afastados da nossa agenda de direitos. Sua atualidade é quase escandalosa quando percebemos como o presente está repleto do passado.

Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido por Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro no dia 13 de maio de 1881, exatos sete anos antes da abolição da escravidão no Brasil. Filho de avós escravos, mas de pais nascidos livres, sua família pertencia a uma pequena “elite negra” que ganhara maior ascendência durante o Império. Já ele, a despeito de ganhar certo renome como escritor, viu ruir seu sonho de inclusão republicana. João Henriques, o pai de Lima, era tipógrafo formado pelo Instituto Artístico. De lá sairia empregado no Jornal do Comércio, e em 1872 já estava no A Reforma, a essas alturas dirigido por Afonso Celso Afonso de Assis Figueiredo, futuro Visconde de Ouro Preto. Amália Augusta, a futura mãe de Lima, era neta de escravos e afilhada da família de Manuel Feliciano Pereira de Carvalho: nascera livre como João Henriques. O médico e senhor da casa daria educação diferenciada a esses afilhados de sua família extensa. Basta dizer que a menina que sabia ler e escrever com perfeição e diplomou-se como professora pública após ter concluído a formação no colégio Santa Cândida.

Afonso Henriques de Lima Barreto teve seu nome escolhido em homenagem a seu padrinho e agora senador, Afonso Celso de Assis Figueiredo. Com a queda do Império em 1888 — e do próprio Visconde – João Henriques foi um dos primeiros desempregados da República. Mais uma vez contando com a influência de Ouro Preto, em 1893 aceita um emprego como almoxarife e depois administrador das Colônias de Alienados situadas na Ilha do Governador.

É nesse contexto que entram em voga, e não por coincidência, uma série de teorias raciais. Enquanto a liberdade jurídica virava possibilidade, a igualdade entre os homens começava a ser questionada. Adeptos do darwinismo racial, julgavam a mistura de raças sinônimo de decadência individual e da nação. Mestiços acumulariam vícios das duas raças e seriam portadores de estigmas degenerativos: loucura, epilepsia, tuberculose, criminalidade, entre outros. Lima Barreto combaterá de forma consistente esse tipo de teoria, ao mesmo tempo em que temerá os determinismos raciais.

O escritor é matriculado no Liceu Popular Niteroiense, mais uma vez por conta do Visconde, mas o novo equilíbrio seria breve. Os movimentos políticos que estouravam contra o regime chegavam até a Ilha, com os insurretos da Revolta da Armada (1892-4) ameaçando invadir o local. A despeito dos revoltosos serem contidos, João Henriques “sofreria dos nervos” e em 1902 dá sinais de insanidade. Preocupado com as contas que não fechavam, descontrolou-se e acabou aposentado, passando a depender do sustento do filho mais velho, estudante da Politécnica.

O colégio e a Politécnica eram freqüentados por uma maioria abonada e branca, e o escritor, nas crônicas que publicou vida afora, queixou-se da exclusão que sofreu. Lima é obrigado a abandonar o curso, para se transformar em arrimo de família, trabalhando como amanuense na Secretaria da Guerra. Ao mesmo tempo começava a atuar como cronista da cidade. Ia publicando matérias nos jornais cariocas — contos, crônicas e reportagens, folhetins. Ademais, foi fazendo desse jornalismo, que se caracterizava pela sátira e pela crítica social, seu local de projeção. Era a partir desse tipo de local, também, e sempre na oposição, que ele constitui seu círculo literário — o grupo boêmio que se reunia na Confeitaria Papagaio; escreveria a sua revista — a Floreal, que tinha como alvo a literatura romântica e a Academia Brasileira de Letras; assim como se apresentaria como uma voz singular dos novos tempos republicanos: negro, suburbano, pobre, um escritor realista e militante.

Lima ia produzindo uma literatura em trânsito, a partir da janela do trem da Central, que tomava todo dia no percurso que fazia do subúrbio para o centro. Da sua janela Lima anotava tipos, ruas, vizinhanças, expressões do povo, arquiteturas, procissões, bares, assim como se incluía e se excluía naquilo que redigia. Se era a favor da “pureza” dos subúrbios, maldizia a “língua errada do povo” e os hábitos religiosos “atrasados”. Não gostava também de arranha céus, das feministas e do futebol, práticas que incluía dentre as “estrangeirices” que atacavam a República.

Em 1911 começa a escrever sua maior aposta, no sentido de se inserir nessa “República das Letras”. Publica no Jornal do Commercio, sob a forma de folhetim, o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma. O livro apresentava, assim como em Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909), outro alterego de Lima. Se Isaías só descobriu que era negro a caminho da cidade, já Policarpo simboliza o fracasso com que Lima resumia a curta história da República brasileira. Nacionalista, defensor do Tupi e dos bons valores morais, o herói acaba isolado e preso. Autobiográfico, o romance retorna à época da Ilha do Governador, com Policarpo vivendo às turras com Floriano Peixoto e seu governo autoritário. A loucura habita o novo romance, à semelhança do que ocorria no cotidiano de Lima. Seu pai a essas alturas passava o dia sentado numa cadeira, ora calado, ora emitindo sons agudos. Lima muda para a Rua Mascarenhas, no mesmo bairro de Todos os Santos, e batiza sua casa com dois nomes: Vila Quilombo — numa referência a sua origem e projeção literária; Casa dos Uivos, que era o apelido que os vizinhos davam ao local.

Ainda em 1912 colabora no jornal A Gazeta da Tarde, publicando fascículos das “Aventuras do dr. Bogolof”, que lhe angariam leitores afinados com suas pejas à República. Mesmo vivendo bom momento profissional, Lima consegue uma licença da Secretaria da Guerra. No Diário Íntimo de 1914 anota: “andei bebendo muito, andei porco, imundo”. Nesse ano, passa pela experiência traumática da primeira internação no Manicômio Nacional. Comparou-se a Dostoievsky e descreveu o momento em que foi despido para exame de corpo, como se fosse um representante da literatura, não só realista como russa. No seu diário, Lima anotou pacientes com suas manias, a pobreza local, a pouca comida e a prática de humilhações. Os internos eram em sua maioria negros, pobres e sem condições de se inserirem nessa república, que, segundo ele, prometera igualdade e entregara exclusão social.

De volta a seu cotidiano é convidado a escrever para o Correio da Noite. Em 1915 Numa e a ninfa começa a ser publicado em folhetins no jornal A Noite. Dessa vez, ao invés de investir contra os jornalistas, Lima atingia os políticos acusando-os de corruptos e parasitas. Também é nesse período que dá início a sua longa colaboração na Careta, que unia humor, política e costumes.Tudo parecia melhor, até porque em 1916 é finalmente publicado Triste fim de Policarpo Quaresma. Animado, Lima tenta candidatar-se à Academia Brasileira de Letras mas seu pedido não é sequer analisado. Mais licenças e uma internação em 1919 fazem com que o escritor fique muito afastado do trabalho. Escreve então vários textos sobre suas passagens pelo manicômio, anotando impressões não só em seu diário, como em crônicas e num romance incompleto: Cemitério dos vivos. Vida e obra iam se misturando, com o autor confundindo-se com seu mais novo personagem: Vicente Mascarenhas.

O escritor acharia ainda novas causas para aderir. Se juntaria aos círculos anarquistas cariocas, sobretudo após as greves de 1917. Em 1918 publica em A Lanterna, sob pseudônimo de Bogoloff, e na revista ABC apresenta seu manifesto maximalista, onde advoga uma nova literatura social.

Mas a bebida que o tornava criativo também o consumia por dentro. Tanto que é considerado “inválido para o serviço público” e aposentado da Secretaria da Guerra no ano de 1918. O escritor passa a beber ainda mais, a vagar pela cidade, e, livre das amarras do Estado, torna-se mais radical nas críticas ao governo. Mesmo assim, em 1919 tenta nova entrada na Academia, fracassando mais uma vez. Como consolação ganha, em 1920 um prêmio literário por seu último livro: Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Nesse mesmo ano aparece nas livrarias uma coletânea de contos organizada por Lima, chamada Histórias e sonhos, assim como ele entrega a seu editor os originais de Marginálias. Ainda no ano de 1921 publica um trecho do romance Cemitério dos vivos e apresenta-se novamente como candidato a ABL, retirando seu nome antes da votação.

Em 1922 entrega os originais de Feiras e Mafuás e publica o primeiro capítulo de Clara dos Anjos na revista Mundo Literário. Aí estava seu alterego feminino e o livro que fora reescrito por Lima durante toda vida. Clara, que morava no subúrbio, era negra como ele, termina sua história grávida e desiludida. Se Lima continuava a escrever combativamente, agora saia pouco de “Todos os Santos”, vivendo nas tachas da vizinhança, ou em casa junto à Limana: sua farta biblioteca.

Monteiro Lobato passou a procurá-lo desde os anos 1920, assim como “os meninos da Semana de 22” enviaram a ele o primeiro exemplar de Klaxon, em busca de uma boa resenha na Careta. Lima não entendeu, porém, o grupo dos modernistas paulistanos, que chamou erroneamente de futurista, assim como eles responderam à crítica com o mesmo salto alto.

A essas alturas, porém, Lima Barreto não deve ter se dado conta do prejuízo literário. Morre de colapso cardíaco no dia 1 de novembro de 1922, com 41 anos de idade, dois dias antes de seu pai. Ambos estão enterrados na mesma lápide no cemitério de São João Batista, em Botafogo: bairro contra o qual sempre manifestou grande antipatia. Lima se bateu por um lugar na literatura do país, que não parecia estar à disposição, ao menos em seu contexto. Talvez por isso, premonitoriamente, em seu diário confessou: “Ah literatura, ou me dá o que lhe peço, ou me mata”.

Sugestões de leitura:
Prado, Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro, Cátedra, 1976.
Resende, Beatriz (org). Toda crônica. (2 volumes).Rio de Janeiro, Agir, 2014.
Schwarcz, Lilia (org). Contos completos. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.